Esta é a terceira reportagem da série que conecta o Nordeste à política climática e destaca os povos da região que tiveram suas lideranças reunidas em Fortaleza na Cúpula dos Povos Nordeste na COP30

De 21 a 23 de agosto Fortaleza sediou a Cúpula dos Povos Nordeste na COP30 e o II Seminário: Transição ou transação energética? Conflitos, Violações de Direitos, Clima e Poder Digital. Eventos que reuniram diversas lideranças da região que discutiram o seu papel na construção de uma política climática nacional. A Eco Nordeste ouviu algumas dessas lideranças nesta série cuja proposta é a inserção do Nordeste na Cúpula Climática marcada para novembro em Belém do Pará.
Uma das lideranças foi o cacique Roberto Anacé. Ele fala sobre a invisibilidade do seu povo e dos biomas fora da Amazônia: “me angustia ver que a visibilidade é sempre amazônica, enquanto os nossos biomas seguem esquecidos. Tentam esconder os crimes cometidos no litoral até hoje. Tentam esconder as verdades sobre as questões climáticas e energéticas”. E critica o descaso: “quando for preciso pagar essa conta, as comunidades serão as mais impactadas, enquanto os outros pagarão menos”.
“A centralidade na Amazônia, ainda que considerando sua relevância estratégica, não pode criar uma hierarquia artificial de importância climática entre biomas que não corresponde à realidade científica dos impactos e vulnerabilidades dos diversos biomas brasileiros”, afirma Soraya Tupinambá, bolsista pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Ceará.
“A Caatinga, por exemplo, tem sido um laboratório de adaptação climática onde há uma profusão de conhecimentos tradicionais de convivência com clima semiárido e com a implantação de tecnologias sociais replicáveis globalmente e de uma experiência centenária em gestão de recursos hídricos escassos”, acrescenta.

Soraya reforça que são séculos de adaptação climática e uma mudança paradigmática: de “combater” para “conviver” com o Semiárido. E finaliza: “além disso, é fundamental reconhecer o Bioma Caatinga com seu destacado potencial de sequestro de carbono”.
Conexão de territórios locais
à agenda climática global
Para Evanildo B. Silva, diretor da FASE – Solidariedade e Educação, a Cúpula dos Povos Nordeste representa um momento estratégico para que organizações e sociedade civil reflitam sobre as mudanças climáticas a partir de uma perspectiva regional. “É a oportunidade de refletir sobre as mudanças do clima a partir de uma visão do Nordeste, que em si já é uma condição peculiar e particular”, afirma.
Segundo ele, o encontro conecta as realidades locais com a agenda global. “São reflexões que, ao mesmo tempo em que conectam a região Nordeste a si mesma, também a relacionam com os efeitos que as mudanças climáticas impõem sobre povos, territórios e biomas no mundo inteiro”, explica. Entre os biomas da região, ele destaca a Caatinga e a Mata Atlântica.
Evanildo lembra que a agenda da Cúpula dialoga com a preparação para a COP30 e com o debate em torno da Amazônia. “A origem dos problemas climáticos é a mesma: a emissão de gases sem nenhum controle. E, em contrapartida, temos visto a adoção de falsas soluções, alternativas favoráveis ao mercado e não aos territórios nem à sociedade como um todo”, critica.
Para ele, dar visibilidade aos impactos já sentidos no Nordeste é central. “Temos vários exemplos de efeitos perversos sobre territórios e populações, seja em relação às chamadas energias renováveis, seja em relação a povos e populações tradicionais. A pesca artesanal, as comunidades que vivem no entorno das eólicas e, de modo particular, as periferias urbanas, têm sofrido com eventos extremos cada vez mais frequentes, com enchentes, desmoronamentos e desabrigados”, aponta.
O diretor da FASE reforça que a Cúpula busca não apenas diagnosticar as urgências, mas também discutir alternativas reais. “Trazemos a missão de enfrentar o tema das alternativas, e não só o diagnóstico”, ressalta.

Ele também destaca o caráter estratégico do encontro como preparação para os debates globais. “Pretendemos colaborar com a pauta da Cúpula dos Povos, que será e ao mesmo tempo com a pauta da sociedade civil global”, afirma.
Para Evanildo, um dos legados do evento será a continuidade da articulação regional. “Um resultado relevante haverá de ser pensado em termos de continuidade dessa discussão com esse recorte regional, mas absolutamente integrado à agenda da Cúpula dos Povos e certamente para a incidência sobre a COP30”, conclui.
‘Não é transição,
é transação energética’
A preparação para a Cúpula dos Povos Nordeste tem se fortalecido desde o início do ano com plenárias de articulação, caravanas em territórios e o envolvimento de organizações, sindicatos e movimentos sociais. Segundo Francisco Vladimir, da Rede Jubileu Sul Brasil (JBS) e do Comitê Cearense da Cúpula dos Povos, esse processo acumulou debates e proposições para enfrentar os impactos da crise climática.
“Estamos construindo um documento de proposições da Cúpula dos Povos Nordeste rumo à COP30 em articulação com organizações do mundo inteiro”, afirma. Para ele, é fundamental dar visibilidade aos problemas que se aprofundam no contexto nordestino, como a chamada transição energética. “O que temos visto é uma transição injusta, marcada por megaprojetos que chegam expulsando comunidades e camponeses, sempre com o aval dos governos”, critica.
Vladimir questiona a lógica de desenvolvimento que sustenta esses empreendimentos. “Os governos têm permitido que grandes projetos se instalem em nome do progresso. Mas isso é falso porque sabemos que poucos lucram com isso, enquanto os povos perdem territórios e direitos”, aponta.
A crítica se estende à dependência econômica gerada pelos investimentos. “Chamamos de transação e não de transição porque envolve muito dinheiro, empréstimos e dívidas que acabam recaindo sobre os povos, mesmo quando não foram eles que as contraíram”, denuncia.

No caso do Ceará, ele cita como exemplo a possível instalação de um data center que deve consumir grandes volumes de água. “Isso também acarreta um problema climático, não só para o território que recebe o empreendimento, mas para o conjunto do clima. Aqui, essa obra já ameaça o povo Anacé, que enfrenta o risco de expulsão”, alerta.
Para Vladimir, a Cúpula dos Povos Nordeste é, sobretudo, um espaço de resistência e de proposição. “Esse evento foi construído a partir de um acúmulo crítico e pensando estratégias de como os povos podem apresentar alternativas para uma verdadeira justiça socioambiental, sem megaprojetos que sacrificam territórios e comunidades”, conclui.
Andréia Camurça, coordenadora de Incidência Política do Instituto Terramar, reforça que o debate sobre transição energética no Brasil tem sido distorcido por interesses econômicos e corporativos.
Ela alerta que, enquanto se avança na exploração de petróleo na Foz do Amazonas, as populações do Nordeste acumulam impactos de diferentes frentes – renováveis, não renováveis e outros grandes empreendimentos. “O Nordeste tem sofrido todos os danos e impactos, e não podemos aceitar que povos indígenas, quilombolas, comunidades extrativistas, assentados da reforma agrária e pescadores continuem tendo seus direitos violados”, denuncia.
Para a coordenadora, há uma tentativa sistemática de silenciar essas populações, que enfrentam racismo ambiental e violações de direitos humanos. “Quando olhamos para onde estão sendo instalados esses megaprojetos, é sobretudo no Nordeste”, ressalta.
Segundo ela, o Nordeste tem sido colocado como “quintal para o processo de descarbonização da Europa”, especialmente a partir de projetos de energia renovável que chegam à região como se fossem a única solução para o caos climático. “Se olha para o Nordeste como esse lugar para expansão da energia eólica, solar, offshore e agora também do hidrogênio verde; e, mais recentemente, surgem os data centers”, explica.
Ela lembra que comunidades já convivem com emergências climáticas graves, como pescadores do Rio Jaguaribe, no Ceará, afetados por cheias e erosão costeira. “Essas comunidades vêm denunciando: ‘precisamos proteger os nossos territórios. Nenhum passo a mais para dentro deles por parte dos empreendimentos’”, afirma.

Andréa reforça que o discurso da transição energética encobre a ampliação de fronteiras produtivas e novas pressões sobre territórios tradicionais. “Em nome do clima, nós não vamos ter uma transição energética, vamos ter a ampliação dos empreendimentos para o capital. Os conflitos se multiplicam: turismo convencional, carcinicultura, eólicas em terra e no mar, mineração e agora os data centers”, critica.
Para ela, os impactos não se limitam ao ambiente físico. “Os data centers não são apenas infraestruturas que demandam muita energia e água, mas tratam de dados, de informações nossas. Isso nos coloca em risco quando pensamos em soberania nacional, soberania digital e soberania da informação.”
‘Transição energética é falácia
quando sacrifica territórios’
A Cúpula dos Povos Nordeste, traz à tona críticas ao modelo de produção de energias renováveis no Brasil, especialmente no Semiárido. Para Tárzia Medeiros, militante feminista, advogada popular e integrante do Movimento de Atingidas e Atingidos pelas Renováveis (MAR), o evento tem o papel estratégico de dar visibilidade às pautas invisibilizadas na cúpula oficial.
“Essa discussão é muito importante porque a realidade concreta do Nordeste não costuma aparecer nas discussões globais sobre o clima. Como a COP30 vai ser realizada na Amazônia, todos os olhos estão voltados para lá, mas os dilemas da Caatinga e do Semiárido seguem desconsiderados”, explica.

Segundo Tárzia, a crise vivida no Nordeste é sistêmica, marcada pela convergência entre crise climática, hídrica e energética. O modelo de expansão das energias renováveis – em forma de megaprojetos de eólica e solar – estaria agravando os conflitos. “Pouca gente sabe que mais de 90% da produção de energia renovável no País se concentra no Nordeste. Produzimos cinco vezes mais do que consumimos, mas esse modelo não atende às necessidades dos povos locais, só aos interesses do lucro”, denuncia.
Ela alerta que as instalações de usinas eólicas, solares e, mais recentemente, de hidrogênio verde e data centers, vêm impondo zonas de sacrifício. “Esses empreendimentos chegam desmatando áreas da Caatinga, expulsando comunidades e ameaçando povos indígenas, como os Anacé, em Caucaia (CE). É racismo ambiental porque essas instalações se concentram justamente onde vivem populações historicamente vulnerabilizadas”, critica.
A advogada também aponta a ausência de consulta prévia às comunidades afetadas, prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “É uma falácia dizer que estamos diante de uma transição energética justa, porque os territórios não estão sendo ouvidos. Se as comunidades dizem que é injusto, é porque estão sendo fortemente impactadas”, afirma.
Para ela, o discurso de progresso esconde um modelo colonialista, que transforma a natureza em mercadoria. “O que está em curso não é uma transição, mas a financeirização dos bens comuns. Não aceitamos que os nossos territórios virem zonas de sacrifício em nome de uma falsa alternativa energética que não é socialmente justa nem ambientalmente sustentável”, conclui.
Nordeste denuncia violações
O seminário preparatório para a Cúpula dos Povos rumo à COP 30 reuniu 150 participantes dos nove estados do Nordeste, que discutiram os impactos da crise climática na região e as ameaças representadas por grandes empreendimentos de energia e infraestrutura.
Para Mércia Alves, do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia e integrante da Articulação de Mulheres Brasileiras, a pauta climática não pode ser tratada de forma descolada das realidades locais. “A questão climática afeta diretamente o Nordeste e incide sobre as vivências das organizações, das mulheres, dos homens, da população negra, da população trans, sobretudo nos seus territórios”, afirma.

Entre os principais problemas denunciados, estão a criminalização de lideranças, a violação de direitos de povos e comunidades tradicionais e a instalação de usinas eólicas, solares e data centers sem consulta prévia. “O que vemos é um processo crescente de apropriação da terra, da água e da energia, com o aval do Estado e dos governos locais, em favor das grandes corporações do capitalismo financeiro”, critica.
Segundo Mércia, essa lógica tem provocado uma “financeirização da vida” e a mercantilização dos bens comuns da natureza, em nome da chamada mitigação do clima. O resultado, aponta, é o agravamento das desigualdades sociais, de gênero e raciais. “As populações pobres são as mais atingidas. As mulheres, pela centralidade na reprodução da vida, sofrem ainda mais, inclusive com aumento da violência sexista. É o racismo ambiental que marca a implantação desses empreendimentos”, denuncia.
Ela lembra ainda que os impactos ultrapassam a dimensão material. “Há consequências também na saúde mental da população que vive da pesca e da agricultura familiar, porque os ciclos de produção e os modos de vida vêm sendo alterados por esse mercado corporativo”, destaca.
O seminário, afirma Mércia, reforçou a urgência de construir alternativas populares e democráticas diante da transição energética em curso. “O que vivemos não é sustentável. Precisamos debater uma transição justa, que considere nossa diversidade regional e assegure a participação das comunidades, como prevê a Convenção 169 da OIT. Sem isso, seguimos em um processo de mercantilização da vida e do meio ambiente”, conclui.
Leia as matérias anteriores desta série:
Entidades defendem Nordeste na pauta climática nacional
ICID III reforça protagonismo do Semiárido na cena climática