Outro olhar para a Caatinga

Por Bruno Ary
Paisagista e diretor de Parques e Jardins da AMA / Sobral

Em anos excepcionalmente bem chuvosos, como este, o sertão do Ceará mostra também sua outra face | Foto: Maristela Crispim

Abril é mês de muitas chuvas no nordeste brasileiro, época em que a Caatinga, vegetação típica da nossa região, está em seu pleno esplendor, vicejando verde e explodindo em flores. Em anos excepcionalmente bem chuvosos, como este, o sertão do Ceará mostra também sua outra face.

Repleto de alagados em todos os seus baixios, muitas paisagens chegam a lembrar pequenos pantanais. Já os animais, hoje ainda comuns no inacessível pantanal, por aqui já foram extintos ou tiveram sua população reduzida de forma drástica há muito tempo. Mas vez por outra, algumas raridades dão as caras e surgem vídeos, fotos e relatos destes avistamentos.

De vez em quando um Tuiuiú em Iguatu, uma Sucuri no Catu, a Capivara no Caça e Pesca ou o Jacaré em plena Parangaba! Estes são exemplos reais de registros que ocorreram entre 2019 e 2020 e surpreenderam muita gente, pois se acredita que a região de Caatinga é obrigatoriamente um amontoado de galhos secos, com, no máximo, preás, mocós, soins, calangos e pebas.

No imaginário popular, Caatinga é isônimo de cactos e uma paisagem seca, possivelmente com uma caveira de boi ao lado. Aliás, esta é a paisagem típica que você vai achar nas pesquisas de imagem do Google ou nos livros didáticos de Biologia que falam da Caatinga.

Pouco se sabe sobre como era a Caatinga originalmente, no início do processo de colonização, quando se deu a chegada dos rebanhos de gado e abertura de pastagens. Naquela época, não havia interesse na preservação e no registro dos detalhes da Biodiversidade. O fogo, o capim e o gado avançaram sobre as porções mais viçosas das matas, muito antes que se pudesse registrar em detalhes a sua forma e riqueza.

O interesse científico na Caatinga é recente, e sua própria descrição como bioma, já encontra uma paisagem mutilada. Para entendê-la hoje, é preciso montar peças de um complexo quebra-cabeça socioambiental e histórico.

Em abril, comemora-se o Dia da Caatinga. Nesta data, a frase “a Caatinga é o único bioma exclusivamente brasileiro” se repete à exaustão. É reiterado que o bioma é composto apenas por vegetação dissecada, de baixo porte, esbranquiçada e retorcida, que permanece seca a maior parte do ano e ao menor sinal de chuva se cobre de verde, transformando a paisagem.

No imaginário popular, Caatinga é isônimo de cactos e uma paisagem seca, mas é muito mais que isso | Foto: Maristela Crispim

Expandindo os horizontes

Porém, observando outras formações de vegetação do continente americano, observa-se que Caatinga na verdade é uma sub área de um domínio biogeográfico maior, fragmentado e descontínuo, composto por diversas florestas secas neotropicais isoladas entre si, distribuídas desde a região de Missiones, na Argentina até o deserto de Sonora, na fronteira entre EUA e México, nos vales intermontanos andinos, à ilhas Caribenhas.

A natureza não conhece fronteiras geopolíticas, mas a linguagem e o nacionalismo pode isolar pesquisadores, gerando distorções na percepção e conhecimento sobre todos os “biomas brasileiros”, especialmente a Caatinga.

Há hoje, grupos de pesquisadores de ponta estudando intensamente as interconexões biogeográficas entre essas áreas isoladas por grandes distâncias e seus biomas adjacentes. Mas, para o público em geral, continua-se repetir a clássica afirmação de que “a Caatinga é um bioma exclusivamente brasileiro”.

Repetir isso, ao contrário do que alguns podem pensar, não irá tornar a Caatinga mais importante, por ser única, fortalecendo assim sua conservação, mas tenderá, na verdade, a afastar leitores curiosos e jovens estudiosos do caminho de pesquisar as suas correlações com essas outras florestas secas espalhadas por toda a América Latina Intertropical.

A dificuldade de se identificar as similaridades de biomas do nordeste brasileiro com os de outras regiões da América também se dá pela barreira linguística, histórica e sociopolítica que existe entre o Brasil, que sofreu colonização portuguesa, e os demais países vizinhos, de colonização espanhola.

Se conectar para compreender

Ainda hoje, uma diferença linguística e a segregação dos bancos de dados sobre Biodiversidade, que são, em sua maioria divididos por países (cujas fronteiras são geopolíticas, mas não ecológicas) afasta as instituições de ensino e projetos de pesquisa relacionados à Biodiversidade brasileira da realidade dos nossos irmãos latino-americanos, que estão logo ao lado, porém socialmente e intelectualmente pouco conectados, apesar das condições geográficas e ecológicas serem diretamente correlacionadas.

As região da Caatinga no Nordeste brasileiro divide inúmeras características de vegetação, clima e fauna com outras áreas de florestas secas tropicais desde a Argentina até o extremo sul dos Estados Unidos. Cada uma das áreas de florestas secas neotropicais possui suas características peculiares, por conta do isolamento geográfico, e todas elas tem um alto índice de espécies endêmicas, aquelas espécies que só existem ali.

Mas mesmo as espécies endêmicas encontram quase sempre suas primas-irmãs correspondentes, muitas vezes do mesmo gênero, ocupando nicho ecológico semelhante em outra área distante, em um fenômeno denominado cientificamente como “vicariância“. Espécies como o Angico, a Jurema-preta e o Ipê-roxo, ocorrem amplamente nas áreas citadas, de norte a sul.

No geral, as espécies típicas dessas matas secas são adaptadas a resistir a longos períodos de estiagem e aproveitar rapidamente dos períodos de bonança proporcionado pelas chuvas sazonais, como as que caem em abril aqui no Nordeste. Essas florestas estão sempre avizinhadas de formações mais úmidas, como a Mata Atlântica no leste brasileiro e as florestas nebulosas andinas.

Estas outras matas, por estarem expostas constantemente a brisas úmidas vindas do Atlântico, são riquíssimas em plantas epífitas e rupícolas, que vegetam apoiadas em troncos e rochas, respectivamente, expostos ao movimento dessas brisas, captando a umidade atmosférica e o orvalho diretamente da atmosfera.

Esse mosaico ecológico neotropical é muito complexo e também contém diversas formações de cerrado, com pantanais ou chacos, além da grande Bacia Amazônica e várias formações florestais plúvio-nebulosas semelhantes à Mata Atlântica, presentes desde o litoral até as montanhas mais altas no interior do continente, sempre relacionadas ao movimento das brisas úmidas originadas no Atlântico.

Navegando em rios voadores

É importante entender o movimento das brisas úmidas, e seu fluxo entre as montanhas e vales, formando matas sempre verdes, para entender a existência das florestas secas, que aparecem justamente como contraponto nas áreas de sotavento dessas montanhas, onde a umidade das brisas não chega, ou chega apenas parcialmente, e ali o aporte de água dependerá majoritariamente de fenômenos meteorológicos sazonais e incertos.

Outras áreas com mata seca, e é o caso da face litorânea nordeste, tanto no Brasil, como na Venezuela e na Colômbia, no Caribe, onde a força dos ventos alísios é tão grande que impede a formação de nuvens de chuva na maior parte do ano, carregando a umidade para longe rumo ao interior da Amazônia e aos Andes tropicais, onde chove quase que diariamente.

Conceitos e percepções

Para definir um bioma ou uma unidade de paisagem específica, leva-se em conta características geográficas, climáticas e ecológicas em comum. Porém, a diversidade biológica nas florestas secas neotropicais é absurda. Mesmo comparando a Caatinga encontrada no Estado do Ceará com a do Norte de Minas e Bahia, já haverá diferenças muito significativas, mas ainda assim fazem parte do mesmo “Bioma Caatinga“.

Com isso, o que diferenciaria fundamentalmente a Caatinga das demais florestas secas, como por exemplo as do litoral da Venezuela, Trinidad e Tobago ou Belize, que são geologicamente e ecologicamente tão semelhantes ao que se encontra no litoral do Ceará e Rio Grande do Norte?

Devemos valorizar a Caatinga como maior área contínua do bioma de florestas secas neotropicais e como a casa de uma diversidade socioambiental peculiar, mas não necessariamente como “exclusivamente brasileira”.

Tradições e sociobiodiversidade

Além de bichos e plantas, a Caatinga acolhe também diversos grupos sociais com modos de vida distintos, dentre eles destaca-se a figura icônica do sertanejo. Gente guerreira e de fé, guarda muita história e devoção religiosa, muitos são devotos de Padre Cícero, o que poucos parecem ter entendido é que o “padim” era também um grande ecologista, como mostram registros históricos, onde pregava que o sertanejo deveria plantar árvores, cuidar do solo e das águas, sob pena de “o sertão virar uma secura só”, caso a devastação desenfreada das matas continuasse como estava acontecendo naquela época.

Infelizmente o que ainda se vê por toda parte é o avanço da desertificação, somado com a inércia da sociedade em agir para reverter esse processo que leva fatalmente à pobreza e culmina em abandono de terras e êxodo rural.

Nosso povo, cheio de fé, vai à missa ou ao culto, mas ainda esquece de plantar árvores, de cuidar do solo e dos animais, de que fazer bem ao próximo pode ir além da esfera humana. É preciso pensar no todo, desde o solo que nutre, resseca e encharca, ao vento que transporta umidade, ora ressecando, ora irrigando, e a chuva que tanto alivia a seca como gera grandes enchentes.

Memórias póstumas

A Caatinga que se vê nas beiras de estrada e que muito se estuda nos dias de hoje, em geral já encontra-se profundamente alterada pelas atividades humanas e em processo de desertificação já acentuado, sendo muito raro encontrar um fragmento significativo de Caatinga em seu estado clímax, com grandes e frondosas árvores, cactos gigantes, rica em fauna e beleza natural.

Essa floresta jovem, em estagio de recuperação, é conhecida como “capoeira“, as capoeiras são remanescentes empobrecidos de outros tempos que sustentaram ciclos econômicos desde o brasil colonia, quando primeiramente se começou a exportar as madeiras mais nobres para a Europa, e transformar terras densamente florestadas em brasa. Nesse então “Brasil” que ardeu e hoje ainda arde em fogo, já se plantou tanta cana, algodão, pastagem e roçados de feijão e milho. Madeiras grossas foram usadas em grande quantidade como dormentes de ferrovias e queimadas em caldeiras que moveram os trens a vapor para lá e para cá a carregar mercadorias.

Até hoje estão em plena atividade, e tendo como matriz energética a madeira da Caatinga, milhares de fornos de fábricas e cerâmicas e em cada um dos milhões de bolos, pizzas e do pão nosso de cada dia, que pouco a pouco continuam a queimar a sofrida mata branca.

Com o avanço do fogo nos territórios, o verde dá lugar a espécies mais rústicas e agressivas, o solo fica empobrecido | Foto: Maristela Crispim

Aqui se faz, aqui se paga

Já sabemos que as florestas são grandes reguladoras do clima e não há muito conhecimento de como era a Caatinga há 400 anos, quando começou essa exploração intensa pelos colonizadores. Encontramos apenas em poucos registros históricos e, nas aparições recentes de animais quase extintos, que citei no início do texto, uma amostra da riqueza ambiental que já se foi.

Nos registros mais antigos, fala-se de enormes florestas sazonalmente secas, onde exploradores se alimentavam até com ovos de ema e havia muita caça. Eles andavam muitos dias na sombra, até encontrar uma área aberta, voavam papagaios, jandaias, araras, temia-se as onças e povos nativos brigavam até a morte com os belicosos brancos recém-chegados, por essa terra que só podia ser muito valiosa e fértil, para despertar tanta cobiça.

Na luta pela conquista da terra, e o desenvolvimento das atividades agrícolas e comerciais, foram esgotados os vastos recursos florestais que mantinham o clima local minimamente ameno, a ponto de ter sido atrativo para o estabelecimento de grandes rebanhos bovinos, no sertão, e extensas plantações de algodão para exportação.

Como consequência do uso insustentável desse território, os olhos d’água perenes começaram a secar, os brejos foram minguando e o efeito das secas sazonais foi cada vez mais devastador, como já descrevem em meados do século IX, os registros da expedição da comissão científica do império ao ceará.

Com o avanço do fogo nos territórios, o verde dá lugar a espécies mais rústicas e agressivas, o solo fica empobrecido e as secas vão tomando conta do que foi explorado e desgastado, por fim, as áreas exauridas são abandonadas e esquecidas.

Poderíamos aprender com os erros do passado, já que esse processo já aconteceu antes, por exemplo no “berço da civilização ocidental”, o oriente médio, de onde o modelo de exploração agropecuária vigente começou e de lá difundiu-se por grande parte do mundo.

Esse esse modo de ver e tratar o mundo, baseado no cultivo de monoculturas, onde se corta as árvores que “não servem para nada”, para se plantar apenas o que pode ser comercializado, tem origem na área que já foi chamada de “crescente fértil”. De lá vieram nossos animais domésticos, que são aqueles que estão presentes em presépios de Natal, e nos livros infantis, e assim são dignos de respeito. Mas hoje a região do oriente médio, que já foi o crescente fértil é marcada pela completa aridez, e muitos conflitos sociais.

Conhecer para preservar

Qualquer criança brasileira sabe reconhecer os animais africanos, como o leão e o elefante; e os animais domésticos, como a vaca e a galinha. Também sabem o que é uma maçã e uma alface, alimentos europeus. Nos é ensinado a conhecer, gostar e cuidar apenas da vaquinha, do carneirinho, do gatinho, do cachorrinho, da galinha, da manga, da cana, do coqueiro, daquilo que foi importado e que diretamente se come e comercializa nas cidades.

Por conta de um pensamento historicamente eurocêntrico, ainda não se dá o valor merecido às nossas “coisas do mato“, como a imburana, a barriguda, o pau-branco, os mufumbos, muito menos os preás, punarés, cassacos, avoantes, jacús, cotias e mambiras. Uma sociedade que não conhece bem a sua natureza não se importa com a sua preservação. Assim, cada vez mais, vai se perdendo no tempo e na memória a Biodiversidade local.

E com menos florestas, altera-se também a dinâmica delicada do clima. O resultado a longo prazo dessas alterações profundas pode vir a ser a formação de um novo deserto, mas repleto de uma população com um padrão de consumo insustentável. Sem recursos suficientes e aglomerados cada vez mais em insustentáveis de centros urbanos adensados, ficamos muito vulneráveis e dependentes de um sistema que nos distancia da natureza, a depender apenas do mercado e do dinheiro, sem a relação íntima com a terra e seus recursos. Temos uma bomba-relógio socioambiental com o pavio aceso e agravada durante uma pandemia viral, que só tende a acentuar desigualdades sociais e acelerar os iminentes conflitos por espaço, dinheiro e poder.

Metamorfose e florescimento

No período crucial de distanciamento que estamos passando, muitos estão se permitindo refletir sobre própria relação com o a sociedade e com o Planeta. É tempo de aprender com a natureza para evitar outras crises futuras. É preciso aprender as melhores formas de lidar com fluxos de matéria e energia da Terra, trabalhando em harmonia com eles, de modo a tirar somente o que precisamos, sem sobrecarregar os ecossistemas.

Não há mais espaço para continuar nessa lógica de exaurir territórios e emigrar para novas áreas. Com bilhões de pessoas no mundo, migraríamos pra onde? Quantas terras virgens ainda restam para terem suas riquezas naturais exploradas?

Enquanto ainda tentamos entender melhor o que é a Caatinga, podemos usá-la como uma boa inspiração para nossa vida, nesse momento difícil de reclusão e distanciamento social, imposto pela crise sanitária.

Assim como as espécies vegetais no Semiárido desprendem suas folhas e diminuem o ritmo para passar longas estiagens anualmente, por vários meses, estamos também em um episódio de reclusão temporária e transformação social.

Ninguém sabe ainda por quanto tempo isso irá durar, nem a dimensão dos impactos desta crise, mas esse também tem se mostrado um tempo propício a aprender a viver com menos, a parar a correria da rotina, ser obrigado a repensar, se reconectar consigo e juntar forças para atravessar o período desafiador de uma pandemia e suas consequências.

Já podemos pensar em como sair melhores e reflorescer quando essa temporada passar, assim como o Mandacaru que floresce no fim da seca, mesmo antes de as primeiras chuvas caírem.

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