Por Aline Gonçalves de Freitas *
Bióloga e professora colaboradora do Curso de Pós-Graduação em Arqueologia da UFPI (2017-2021)
Em tempos obscuros para a Ciência mundial, onde o negacionismo avança a galope conjurado a um descaso governamental sem precedentes, ainda no contexto de uma pandemia, nós, biólogos, nos deparamos com um grande desafio: fazer valer nossas vozes e escolhas.
Certa vez, em minha graduação, um estimado professor nos apresentou uma palestra sobre os “Campos de atuação do biólogo”. Desde então, minha mente esteve atenta às inúmeras possibilidades que o exercício desta profissão pode nos oferecer.
Por exemplo, há alguns anos venho atuando como pesquisadora nas áreas de geociências e Arqueologia, dentro do que consideramos “academia”, onde a preocupação está mais voltada para a formação acadêmico-científica de pessoal em níveis de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado e, consequentemente de uma massa crítica, com habilidades e compromissos com a popularização, difusão e democratização das ciências.
Sou paleobotânica e arqueobotânica. Trabalho com restos microscópicos de plantas antigas (grãos de pólen e outros) depositadas no fundo de lagoas, cavernas, mares e solos arqueológicos em busca de desvendar o clima, o ambiente e paisagem do passado e as relações entre humanos e plantas ao longo do tempo. Meu papel atual é habilitar pessoas a trabalharem com estas ferramentas e difundirem a Ciência.
No entanto, existem diversos caminhos nos quais podemos atuar. Listarei brevemente alguns: consultorias ambientais, planos de manejo em Áreas de Proteção Ambiental (botânica, zoologia e ecologia); magistério nos ensinos Fundamental, Médio e Superior, na iniciativa privada, nas áreas de Genética, Biotecnologia, Bioinformática, Biologia Forense e Molecular, dentre outros.
Sabemos também das dificuldades da profissão biólogo. Frases comuns como: “Você vai viver de bolsa? Ou “Você é biólogo, então identifica este bicho ou planta?” ou “Quando você vai começar a ganhar dinheiro?” são bastante familiares à maioria dos colegas de profissão, tendo em vista o tempo destinado à nossa formação e especialização e/ou nossas escolhas por seguir a carreira acadêmica ou atuar prontamente no mercado de trabalho.
Outro embate cotidiano que vivemos é o investimento em nossas pesquisas acadêmico-científicas, por parte dos órgãos de fomento brasileiros (i.e., CNPq / Capes). Naturalmente, este investimento alcança em grande parte as IES (Instituições de Ensino Superior), como as universidades públicas federais e estaduais e os institutos de pesquisa. Portanto se você pensa em atuar como biólogo no campo da pesquisa você deve buscar estes caminhos.
Um panorama incontestável que vivemos há pelo menos cinco anos são cortes abusivos e restrições impiedosas no fomento à pesquisa científica no Brasil, sobretudo na região nordeste brasileira, onde venho atuando há alguns anos, em instituições como a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Esta realidade tem nos tirado o sono, visto que muitos projetos institucionais se desdobram em projetos de extensão, onde naturalmente são envolvidas as comunidades locais fomentando as trocas de saberes e fazeres. Portanto, quando o governo restringe apoio financeiro, não só a comunidade científica sofre perdas mas as comunidades como um todo, o que chamamos de Universidade. Esta é uma visão que infelizmente o atual governo está tentando macular.
Em tempos de quarentena, o trabalho remoto nos “forçou” a nos adaptarmos rapidamente a um novo modelo de comunicação, que já vinhamos usando, mas nunca de forma tão direta e eficaz: a internet. A divulgação científica nunca ganhou tanto espaço em tão curto tempo e, muitos de nós nos moldamos a este “novo normal” sob diversas facetas: aulas síncronas (webconferências, videoconferências e chats) e assíncronas (fórum, correio eletrônico), palestras, entrevistas, debates, comunicações e divulgações científicas em geral.
Neste quesito, nós, biólogos, somos todEs formadores de opinião e precisamos estar atentos e críticos aos acontecimentos que afetam diretamente nossas vidas, sendo nosso dever promover ações de cunho educativo e campanhas de prevenção aos acidentes antrópicos que vimos acompanhando nos últimos anos: os inúmeros desastres ambientais, como desmatamentos e incêndios em áreas florestais nos biomas: Amazônico (hotspot de biodiversidade), Mata Atlântica, Pantanal e Caatinga, afetando diretamente os ecossistemas e a biodiversidade em nosso país e no Mundo.
Há, ainda, o avanço desgovernado do agronegócio no Cerrado brasileiro (outro hotspot de biodiversidade) com o consequente aumento ilegal das áreas de pastagem; os derramamentos de óleo em áreas costeiras e de plataforma continental prejudicando toda a fauna e flora continental e marinha; a emissão desmensurada de gás carbônico (CO2) na atmosfera; a queima desenfreada de combustíveis fósseis, o derretimento das calotas polares; o genocídio e ecocídio dos Povos Tradicionais (indígenas, quilombolas); o cuidado e manutenção dos povos extrativistas e ribeirinhos que mantêm a biodiversidade genética e as múltiplas culturas.
Enfim, ser biólogo é mantermos permanentemente a consciência, a cautela e a responsabilidade em relação à salvaguarda e perpetuação do patrimônio genético, natural e cultural de nosso País e do Mundo. É nos preocuparmos com as questões socioambientais enfrentadas pelos povos indígenas e quilombolas. É compreendermos que sem o incentivo do governo no financiamento e infraestrutura adequados não faremos pesquisas científicas de qualidade e não geraremos dados confiáveis para a melhoria de vida local, regional e nacional. Vide a produção de vacinas em tempos da Covid-19.
Shakespeare veio nos lembrar em, pleno século XXI ou Antropoceno, que o dilema do herói não era seu drama individual e sim o de um mundo em constantes transformações científicas e sociais nas quais ele precisaria se adaptar (Renascimento, “descoberta” das Américas, Teoria Heliocêntrica): “Ser ou não ser, eis a questão/ Será mais nobre sofrer na alma / Pedradas e flechadas do destino feroz / Ou pegar em armas contra o mar de angústias(…)”. Em sua essência, creio que considerar-se biólogo e atuar como tal consiste em possuirmos o pensamento crítico e a consciência necessária para uma mudança de paradigma, de modo a contribuir para o bem-estar da humanidade enquanto por aqui estivermos e ajudarmos a reconstruir uma história digna de ser contada.
Por isso, o negacionismo científico, tão em voga atualmente, se configura como um modo de visão antiquada ou um misto de desculpa e preguiça para não seguirmos adiante com estes valoráveis e fundamentais compromissos.
* Bióloga pela Universidade do Grande Rio (Unigranrio) – 2002; mestre (2005) e doutora (2011) em Geociências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pós-doutora pela Universidad de Murcia, Espanha (2016) e Líder do Grupo de Pesquisa Palinologia Arqueológica, Paleoambiente e Paleoetnobotânica (Polarq) /DGP/CNPq
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