Foto: Maristela Crispim

Por Antonio Rocha Magalhães
Economista
Ex-Secretário de Planejamento do Ceará
armagalhaes@gmail.com

Muito comumente a gente ouve de pessoas, no Semiárido, que antigamente a vida era melhor. Não apenas as pessoas do Semiárido falam isso. Acho que é uma característica do ser humano. Muita gente relembra o seu período de infância ou juventude como de um tempo em que tudo era mais simples, não havia os problemas que temos atualmente.

Na verdade, as pessoas estão se lembrando de um período sem preocupações, ou de quando era mais fácil resolver os problemas. O mundo exterior é outra coisa. Será que era melhor do que é hoje? Começa que a expectativa de vida hoje é bem mais longa do que foi na história, por causa da melhor alimentação, dos cuidados médicos, do progresso da Medicina e do saneamento básico. As pessoas que falam são as que conseguiram sobreviver, não fazem parte das estatísticas de mortalidade infantil que era muito alta no passado.

Para quem habita no meio da Caatinga, sendo trabalhador ou dono de terra, a vida mudou muito.

Vamos pensar no grupo dos fazendeiros e donos de terra. O acesso aos serviços ficava longe, tinha que mandar os filhos para estudar na capital. Se havia um problema de doença, não tinha serviço de saúde disponível. O acesso ao mercado também não era simples: havendo produção para vender, era preciso ir até a próxima cidade. Para negociar o gado das fazendas, faziam-se as boiadas que caminhavam do interior até a capital, tangidas pelos vaqueiros. Meu tio Raimundo tangia boiadas para Fortaleza, na primeira parte do século passado.

Não havia qualquer ideia de saneamento básico, nem de energia elétrica, nem de conforto. O Estado era uma entidade ausente, de forma que os fazendeiros tinham de fazer justiça, ou injustiça, muitas vezes com as próprias mãos. A História do Ceará está cheia de brigas entre famílias, como a que durante muito tempo devastou os Montes, do Icó, e os Feitosa, dos Inhamuns ; ou os Maciel, de Quixeramobim com os Araújo de Boa Viagem. Esses eram os grandes conflitos. Fora os pequenos conflitos, que atingiam o dia a dia das pessoas.

Quando passou a haver eleições, havia sempre muitos conflitos entre os seguidores de diferentes partidos. Canindé não ficou imune a isso. O historiador João Brígido, que fundou em Fortaleza o Jornal “O Unitário”, falava de mortes em Canindé em um conflito eleitoral na década de 1850, no seu livro “Ceará: homens e fatos”. A história toda do Ceará é uma de violência, primeiramente dos colonos com os índios, que foram dizimados, e depois entre os próprios colonos, que se dividiram entre diferentes interesses.

Viver nas fazendas distantes, do Jaguaribe, dos Inhamuns ou de outros lugares do Sertão, poderia parecer romântico, mas a vida era dura e o desassossego permanente.

O que falar dos trabalhadores rurais e dos moradores?

Primeiramente, eles eram dependentes do fazendeiro, eram utilizados como bucha de canhão, na linha de frente, nos grandes conflitos. Eram utilizados como soldados e guarda-costas, além de mão de obra. Corriam os mesmos riscos. Além desses, corriam também riscos adicionais, como os provocados pelas moradias insalubres, feitas de barro e madeiras trançadas, cheias de buracos, e pelo trabalho desprotegido, de sol a sol. O chão das casas era de barro, como que a lembrar sempre que a morada era uma simples continuação do roçado. A qualidade da habitação era a pior possível.

Antigamente, não havia proteção contra os efeitos de secas, que sempre existiram no Sertão. As secas severas causavam mortes de pessoas, de animais domésticos e selvagens. Durante todo o século XX (e antes), os efeitos de secas foram muito severos para todos os grupos. Quando havia uma seca leve, o fazendeiro conseguia proteger a sua mão de obra e manter os seus moradores. Se havia uma seca severa, não tinha jeito,  todos tinham prejuízos. Enquanto os fazendeiros perdiam parte dos seus bens, os trabalhadores e moradores passavam fome, perdiam a própria vida ou migravam para regiões distantes. O Governo tentava proteger as pessoas mais atingidas pela falta de chuvas, mas nunca conseguia neutralizar todos os efeitos.

Apesar de todos esses problemas, as pessoas sentem falta de outros tempos, quando eram pequenas e tinham suas famílias por perto, respondendo pelas dificuldades. Mesmo vivendo na pobreza, isso não impedia às crianças daquele tempo de serem despreocupadas, ou pelo menos terem momentos de despreocupação. Essas mesmas crianças devem ter ouvido os seus familiares mais velhos falarem dos tempos bons de antigamente.

Atualmente ainda temos muitos problemas, mas não se comparam aos daqueles tempos.

Naquela época, as pessoas nem sequer podiam imaginar o acesso a outros serviços de que dispõem atualmente, como educação, saúde, saneamento, deslocamentos, comunicações, internet. Melhorou, de certa forma, a qualidade das habitações, que passaram a ser de tijolo. É mais raro, agora, encontrar casas de taipa. De uma classe totalmente sem direitos, hoje os trabalhadores têm acesso a direitos de que não dispunham e têm, embora nem sempre, o Estado a seu lado para defendê-los. As estradas são melhores, há novas escolas rurais e urbanas, há postos de saúde espalhados pelo território. A qualidade dos serviços ainda deixa muito a desejar.

Não temos como comparar o acesso aos serviços governamentais. Agora temos cidades grandes, com novos tipos de problemas de deslocamento e de infraestrutura urbana. Continuamos na luta, a vida continua sendo injusta, quando permite que uns poucos tenham muito mais do que os muitos. Há coisas que beneficiam todos os grupos, como as comunicações e o acesso a alguns serviços. A falta de oportunidades de trabalho preocupa a muitos que permanecem sem renda.

No Sertão, o salário de equilíbrio do mercado é muito baixo. As pessoas trabalham (ou trabalhavam) por cada dia de serviço, recebendo um pagamento irrisório. As diversas formas de apoio governamental, como a aposentadoria rural e as transferências diretas, aumentam o poder de barganha dos mais pobres. O que as classes médias das cidades do interior veem como preguiça ou desinteresse dos pobres pode ser uma reacomodação do mercado de trabalho. Infelizmente, não podemos controlar os resultados.

As mudanças não acontecem de um dia para o outro. Com o tempo, alguns problemas podem ser superados (por exemplo, a qualidade da educação pública), enquanto outros surgirão.

De tudo isso, creio que podemos dizer que no passado as coisas eram mais difíceis. Entretanto, as experiências são individuais, as pessoas podem sentir saudades de momentos específicos em que foram felizes. Para estas, dizer que antigamente as coisas eram melhores não significa que era melhor viver antigamente, de modo geral.

Durante a vida, aprendemos a deixar para trás aquelas coisas que constituíram problema em várias épocas, enquanto dedicamos mais tempo à luta diária. Acabamos por olhar o passado com certa nostalgia, ao mesmo tempo em que esperamos um futuro mais promissor. Enquanto isso, temos de lidar com os problemas do presente.

4 Comentários
  1. Que texto lindo! Presente maravilhoso desse ser humano ímpar que é o economista Antonio Rocha Magalhães – fonte memorável de muitas matériasaudades econômicase que produzi nos tempos de Diário do Nordeste. Homem sábio e simples em sua essência. Obrigada, Maristela Crispim e Agência Econordeste por nos presentear com essé primor de leitura, que é balsamo em tempos tão desafiadores.

    1. Antonio Rocha Magalhães é um dos tesouros que cultivamos entre nossas fontes jornalísticas de 25 anos de jornalismo impresso!
      Uma grande honra tê-lo como articulista, assim como a professora Vanda Claudino-Sales e o professor Gilmar de Carvalho.
      Obrigada, Ângela Cavalcante, pela audiência e pela valorização do nosso trabalho!

  2. Muito bom seu artigo, e com isso, eu tive minhas visão como reflexão, comparando-se dos tempos antigos, com os tempos atuais.
    Na minha visão, e achava que antigamente, as coisas eram mais fácil.
    Pois quando conversei com senhores que trabalhavam nas feiras da minha cidade Natal/RN, alguns mim diziam, que viver antigamente era melhor. E já nos tempos atuais, eles falam que é complicado.
    Mas acredito de fato de ter-se adaptado com as condições antigas, e não saber ter mais paciência com as coisas atuais, as informações mútuas e compartilhados, tenha afogados pela falta de conhecimento no passado, e com isso, fez com que essas pessoas não tenha facilidade em lhe dar-se com a modernização, pelo convívio repassados de seus país.
    Como a modernização, faz com que todos obrigatoriamente tenha um grau maior em condições, consequentemente vem outros problemas na saúde, segurança e educação, e assim, tendo outra visão, como se estivéssemos vivendo numa época complicado.
    Da reflexão que extraio é: se tudo for estudado em ter melhores condições em qualquer lugar, resultado disso será sempre que os descendentes comentará sobre condições que viveram numa época boa.
    Agora, se permanecer no mesmo ambiente, e deixar-se levar que um dia algo acontecerá, alguns chegarão a dizer que, era muito bom a minha época.

  3. Tem gente que prefere viver estagnada no passado, o ser humano tem que saber se adaptar. Meu pai é de 73 e eu vivo rodiado de frases como “vocês são nutella”, porém, ele mesmo diz que passou a infância dele só trabalhando, acordando no frio pra ir pescar, matando passarinho com funda, carpindo lote e encontrando cobras, andando 5 km numa estrada socada de buraco pra chegar na escola, que quase perdeu sua irmã por conta de uma doença, que Meu vô batia demais nele ….

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