Mutirão reformula cadeias produtivas do São Francisco

A foto mostra uma cena vibrante e animada em um corpo d'água. Em primeiro plano, um menino de costas, sem camisa, está brincando na água, batendo nela com as mãos levantadas e criando um grande e vigoroso respingo que se espalha sobre a superfície. A água ao redor é calma e azul-escura. O garoto está perto de uma embarcação de cor verde limão e turquesa. Ao fundo, uma série de barcos de pesca coloridos (em tons de amarelo, vermelho e branco, entre outros) estão amarrados e agrupados, preenchendo o plano médio. Por trás deles, emerge uma estrutura de dois andares com uma pequena janela no topo, que se parece com a cabine de um barco maior com algumas formas geométricas pintadas
Os múltiplos usos do São Francisco vão do abastecimento da população à geração de energia, suporte a indústrias e agricultura, pesca, lazer e turismo | Foto: Edson Oliveira

Com cerca de 54% do território da sua bacia hidrográfica no Semiárido brasileiro, o Rio São Francisco é vital para muita gente que precisa dele para produzir, matar a sede e se conectar com o sagrado. Seus múltiplos usos vão do abastecimento da população à geração de energia, suporte a indústrias e agricultura, pesca, lazer e turismo. Tamanha demanda tem um preço. O uso crescente e intensivo do Velho Chico já acendeu o sinal de alerta de quem vive o rio e enxerga a olho nu a escassez da água e a perda de sua qualidade. E é com proposta de reverter esse cenário, que ameaça a sustentabilidade do Velho Chico, que foi lançado, na COP 30, em Belém, o Mutirão pelo São Francisco, movimento pautado pela regeneração da Caatinga e do Rio São Francisco, por meio da reformulação das cadeias produtivas localizadas na bacia.

“Praticamente todas as cadeias econômicas da Bacia do Rio São Francisco geram pressão e degradação. Nenhuma foi pensada para respeitar limites ecológicos, elevar a resiliência de ecossistemas e garantir saúde e qualidade de vida para os seres humanos e para todas as espécies que dependem de natureza conservada. Esta irracionalidade precisa ser revertida urgentemente”, destaca Sérgio Xavier, do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima (FBMC), entidade que lidera o Mutirão.

Nesse sentido, o Mutirão pelo São Francisco prevê formulação de modelos de negócio com ativa participação das comunidades tradicionais, dos diversos níveis de governo, dos centros científicos e do setor empresarial, de forma colaborativa, para criar uma oportunidade concreta de estruturar soluções positivas para todos os elos da cadeia, de maneira a fortalecer ecossistemas sociais, econômicos e ambientais de forma prática e integrada.

Para Xavier, o Mutirão “supera as formulações de políticas públicas centralizadas e inova ao unir e trazer as instituições para atuar na vida real da economia local, com foco na implementação imediata das soluções”.

Mais integração e visão sistêmica

Entre as demandas prioritárias, o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), entidade articuladora do movimento, Cláudio Ademar, citou a gestão do rio e a revitalização: “precisamos dar celeridade à revitalização do Rio São Francisco, nos aproximarmos do governo federal, dos governos estaduais e municipais, e ter um grande plano onde todos consigam contribuir”.

O Mutirão, acredita, “será algo inovador, porque queremos juntar as forças que buscam fazer a diferença no São Francisco. Tem muita coisa sendo feita, no entanto, muita coisa isolada. Existe muita política pública sendo construída para o São Francisco, mas não é de forma ordenada, planejada, associada ao nosso plano de bacia. Então, queremos buscar essa integração”.

Ademar fala ainda da importância de uma visão sistêmica que contribua para a sustentabilidade da bacia, mas também para a dignidade e a qualidade de vida de quem vive no campo.

Metodologia de transformação justa

Foto de  uma vista de cima de uma paisagem histórica e natural, focada no telhado e nas torres de uma igreja antiga no centro. O edifício religioso apresenta um telhado de telhas de barro de cor laranja avermelhada desgastadas. De trás do telhado, erguem-se duas imponentes torres sineiras em estilo colonial, de cor clara, quase branca, com detalhes em pedra cinza escura, cada uma com aberturas em arco para os sinos (o sino é visível na torre esquerda) e encimadas por pináculos. Entre as torres, há uma cruz simples. Em primeiro plano e nas laterais, podem-se ver outros telhados de casas históricas com as mesmas telhas de barro e paredes claras (amarelas e brancas) com janelas escuras e varandas. Uma palmeira esguia se destaca à esquerda. A característica mais marcante do fundo é o vasto e azulado Rio São Francisco, que domina o plano médio. A margem oposta do rio é coberta por uma densa e exuberante vegetação verde, que se estende até o horizonte sob um céu claro com algumas nuvens dispersas
O Mutirão deve envolver instituições governamentais, empresariais, acadêmicas e não governamentais das cidades e comunidades que margeiam o Velho Chico | Foto: Edson Oliveira

Um dos diferenciais do Mutirão pelo São Francisco é a chamada metodologia de transformação justa, participativa e ecológica de cadeias econômicas que impactam o território da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. Essa metodologia, que deve envolver instituições governamentais, empresariais, acadêmicas e não governamentais.

Ela prevê a análise dos elementos que compõem as cadeias produtivas mais relevantes em um determinado território, avaliando, por exemplo, uso de água, energia, insumos, transportes, qualidade dos empregos e destinação de resíduos, para identificar gargalos e respectivas soluções sustentáveis. Em seguida, são definidos os papéis de cada um dos setores na implementação das soluções, que passam a ser monitoradas online por toda a sociedade, de forma pública e transparente.

Além de ajudar a definir a política pública adequada, o Mutirão irá apoiar a criação de instrumentos inovadores de financiamento, estruturar diversos incentivos, fortalecer a aplicação de sabedorias ancestrais e promover tecnologias sociais, com foco em processos socialmente justos e ecologicamente regenerativos.

Nesse sentido, várias cadeias estão sendo pensadas para agregar regeneração, inclusão e indicadores de saúde planetária nos modelos de negócios. “E isso não é utopia, é necessidade de sobrevivência”, frisa Xavier.

Ele também dá como exemplo prático integrar o setor de resíduo com o combate à desertificação e a geração de bioenergia: “resíduos orgânicos que geram muito custo para pequenos municípios do semiárido depositarem em aterros sanitários poderiam ser usados para gerar biocombustíveis ou regenerar solos degradados e conter a desertificação”.

Governança multinível e multissetorial

A foto de ambiente interno captura um momento em um evento, com quatro homens sentados e um em pé contra uma parede lisa de cor cinza-claro. Em primeiro plano, no lado direito, um homem de pele morena, vestindo uma camisa cinza-claro e um crachá de identificação, está em pé e falando com emoção em um microfone que segura com a mão esquerda, enquanto gesticula com a mão direita aberta. O olhar dele está direcionado ligeiramente para a frente e para a esquerda. Atrás dele, à esquerda, quatro outros homens estão sentados em uma fila, prestando atenção: o primeiro da esquerda é um homem grisalho de barba vestindo uma camiseta branca; os dois seguintes são homens de meia-idade, ambos usando camisas de cores claras (verde-água e bege), com óculos, olhando para frente; e o último, apenas parcialmente visível, parece estar de óculos. No canto superior direito, há uma tela de televisão ou monitor que exibe texto, incluindo a data "15/11" e as frases "MUTIRÃO PELO RIO SÃO FRANCISCO" e "COP 30 - Green Zone". A iluminação é uniforme e clara
Sérgio Xavier destaca que se trata de um modelo de governança multinível e multissetorial, que possibilita a integração de políticas públicas e iniciativas dos diversos setores | Foto: Maristela Crispim

Outra novidade é a criação do Labs de Transformação Local, espaço público onde os diversos setores se encontrarão para aplicar a metodologia e formular soluções para as cadeias econômicas de um território. Paralelamente, uma rede digital disponibilizará informações e orientará sobre a metodologia, possibilitando o planejamento e o monitoramento de todas as ações.

Entre os aspectos inéditos desse mutirão, Xavier também destaca que se trata de um modelo de governança multinível e multissetorial, que possibilita a integração de políticas públicas e iniciativas dos diversos setores a partir da conexão do Comitê da Bacia do Rio São Francisco (CBHSF) e das Câmaras Temáticas do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima (FBMC), com municípios, estados e o Comitê Interministerial de Mudança do Clima (CIM), composto por 23 ministérios.

Clima e Energia na Caatinga

Maior rio inteiramente brasileiro, o São Francisco atravessa três biomas: Cerrado, Mata Atlântica e Caatinga. Metade da bacia está na Caatinga, bioma já comprovadamente eficiente no sequestro de carbono. Por isso, entre os novos eixos da economia verde em estudo para a região está a proposta do Crédito de Carbono Integral para cooperativas de agricultores familiares.

Segundo Sérgio Xavier, do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima (FBMC), a ideia já está em implantação no sertão de Alagoas, em uma cooperativa que soma todas as áreas preservadas dos associados, realiza a certificação e poderá comercializar os créditos de carbono no mercado. “No Lab de Economia Regenerativa e Inclusiva do Rio São Francisco, um dos Labs de Transformação já ativos na bacia hidrográfica, estamos propondo a criação de fundos municipais que podem desburocratizar a aquisição dos créditos, elevando a renda dos pequenos produtores locais”.

Enfrentamento à desertificação

Além do crédito de carbono, é possível agregar também outros tipos de pagamentos por serviços ambientais para reverter desmatamentos, proteger nascentes e evitar processos de desertificação já em curso na Caatinga. Para Xavier, os governos estaduais poderiam criar incentivos para atrair investimentos e ações regenerativas em áreas que estão em avançado processo de desertificação em vez de autorizar desmatamentos de vegetação nativa, uma vez que “reflorestar a Caatinga é caríssimo e demorado”.

Haroldo Almeida, presidente da Associação dos Produtores de Crédito de Carbono Social do Bioma Caatinga, vive o rio na prática. Ele, que é de Delmiro Gouveia, em Alagoas, local que possui relação histórica e territorial com o Velho Chico, apoia o Mutirão, que “é muito estratégico e forte desde o seu surgimento.”

Coordenador técnico da Cooperativa de Crédito de Carbono Integral, Turismo Regenerativo, Energias Renováveis e Agroecologia Familiar do Bioma Caatinga e do Semiárido e membro do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima, ele também reforçou a importância dessa atuação ampla e integrada para pensar na biodiversidade, no pequeno produtor e em questões voltadas ao clima, saneamento, uso da água, reflorestamento das matas ciliares e combate ao desmatamento, entre outros pontos.

“A gente precisa dessa articulação para poder dar mais visibilidade para a região da Caatinga, para o Rio São Francisco, e também para nossos desafios e projetos. Entendemos que essas ações que vêm trazer recuperação de área degradada e gestão eficiente dos recursos hídricos são extremamente importantes para a Bacia do Rio São Francisco, sua biodiversidade e seus povos”, finaliza.

Cronograma

Entre os próximos passos previstos pelo Mutirão pelo São Francisco está um plano de trabalho com participação do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima (FBMC), Comitê da Bacia do Rio São Francisco (CBHSF), Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e Ministério do Meio Ambiente (MMA). Em seguida, órgãos municipais, estaduais e instituições representativas de todos os setores serão convidados a definir os territórios e suas respectivas cadeias econômicas que serão tratadas.

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