Bahia propõe reconhecer a natureza como sujeito de direito

Foto de um cânion profundo por onde corre um largo trecho de rio visto de cima. As paredes rochosas são altas, íngremes e irregulares, cobertas por vegetação típica da Caatinga, em tons de verde seco. O rio, de um azul escuro e calmo, serpenteia pelo centro da cena, contrastando com as encostas pedregosas. No horizonte, o céu ocupa grande parte da imagem, cheio de nuvens brancas e fofas espalhadas por um azul claro luminoso. À esquerda e à direita, no alto das margens, veem-se torres de energia alinhadas, pequenas diante da grandiosidade da paisagem
Já imaginou se o Rio São Francisco pudesse ter seus direitos assegurados? É algo neste sentido que está n o escopo de uma PEC baiana | Foto: Alice Sales

A COP30 tornou-se palco de um movimento inédito vindo do Nordeste brasileiro. O deputado Marcelino Galo (PT-BA) apresentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Direitos da Natureza, iniciativa que pretende inserir no texto constitucional baiano o reconhecimento da natureza como sujeito de direitos plenos, intrínsecos e perpétuos. A medida, segundo ele, coloca o Estado no mapa do constitucionalismo ecológico já adotado em países como Equador e Bolívia.

Galo afirma que a proposta nasce em um contexto de conflito e urgência. “O extremo sul da Bahia é uma área de intensos conflitos. Falar de direitos da natureza aqui significa também falar dos direitos daqueles que conservam a natureza”, disse. Ele lembrou que o governo brasileiro anunciou, durante a conferência, a homologação de dez territórios, dois deles no Estado, e que esse avanço é fundamental para garantir proteção aos povos tradicionais e às áreas onde mantém seus modos de vida.

Segundo o deputado, a PEC modifica o artigo 212 da Constituição baiana e cria um novo parágrafo determinando ao poder público e à coletividade o dever de proteger, recuperar e respeitar a natureza. “A natureza tem direito de prosperar e evoluir. É preciso reconhecer a interdependência entre todas as formas de vida – humanos, plantas, bactérias”, declarou. Para ele, o Estado deve planejar e administrar recursos ambientais com base no princípio da precaução e em políticas verdadeiramente sustentáveis.

A foto mostra um homem de meia-idade, de pele clara e cabelos grisalhos, sentado e falando ao microfone. Ele veste uma camisa verde de mangas compridas, ligeiramente enrugada, com uma caneta azul no bolso. Sua expressão é séria e concentrada, enquanto gesticula com a mão livre para enfatizar o que diz. Ao fundo, há um painel escuro com ilustrações estilizadas em verde e laranja que lembram formas vegetais
“A natureza tem direito de prosperar e evoluir. É preciso reconhecer a interdependência entre todas as formas de vida – humanos, plantas, bactérias”, declarou o deputado Marcelino Galo (PT-BA) | Foto: Maristela Crispim

É nesse ponto que a discussão dialoga com a perspectiva histórica apresentada por Lucas Kannoa, gerente jurídico do Instituto Internacional Arayara, organização que trabalha com justiça climática e ambiental. Para ele, o debate que hoje chega à Assembleia Legislativa da Bahia faz parte de uma curva mais longa de evolução do Direito.

“Até há poucos anos não se falava de Direitos da Natureza. Assim como, até os anos 1960, não se falava de Direito Ambiental. E, se voltarmos mais um pouco, até 1940, o mundo discutia pela primeira vez um pacto global sobre Direitos Humanos”, afirmou. Ele vê essa linha temporal como o fio que costura as necessidades de cada época: “O Direito reage às urgências da humanidade. No pós-Segunda Guerra, era a igualdade dos direitos humanos. Nos anos 1960, cientistas alertaram: o Planeta não aguenta.”

Kannoa lembrou que marcos como a chuva ácida na Suécia, em 1970/71, e a Conferência de Estocolmo, em 1972, abriram o caminho para a formação de um Direito Ambiental moderno, que o Brasil ajudaria a consolidar com a Eco92. “Trouxemos os princípios de precaução, prevenção, do poluidor-pagador. Mas é um Direito novo, que já não consegue responder às urgências atuais”, disse. Segundo ele, o avanço posterior do regime climático, a partir do Protocolo de Kyoto (1997) e do Acordo de Paris, também demonstra que “evoluímos, mas evoluímos pouco”.

Uma das inovações da PEC é abrir espaço para que qualquer cidadão acione a Justiça para garantir os Direitos da Natureza. “Se um morador vê o rio ser contaminado ou a mata ciliar destruída, ele deve poder recorrer. E o Ministério Público tem legitimidade ativa para atuar”, afirmou Galo. Ele defende que, na interpretação da lei, sempre prevaleça a proteção ecológica: “Nosso ordenamento ainda é antropocêntrico. A crise ambiental exige um novo paradigma, o da justiça ecológica”.

Essa mudança de perspectiva, para Kannoa, é decisiva. “Os sistemas de governo ainda são utilitaristas. Vemos a natureza como recurso. Vemos o animal, em nosso Código Civil, como ser movente. Não reconhecemos a natureza como sujeito de direito”, disse. Ele citou a militância pelo reconhecimento do Rio São Francisco como sujeito de direito e lembrou a existência do Tribunal Internacional dos Direitos da Natureza. “O Direito da Natureza avança de mãos dadas com o Direito Climático. É um direito novíssimo, que trata da responsabilidade pelos danos climáticos à natureza. Se não mudarmos do antropocentrismo para perspectivas biocêntricas e ecocêntricas, deixaremos de existir.”

A foto mostra um homem sentado em uma cadeira clara, segurando um microfone enquanto fala. Ele tem barba, cabelos escuros e cacheados, e usa óculos. Veste um blazer bege sobre camisa escura e está posicionado à frente de um grande painel digital azul que traz a frase “Brasil Nordeste: onde oxigênio se renova”, acompanhada de ilustrações de cactos e ondas
Lucas Kannoa afirma que, se não mudarmos do antropocentrismo para perspectivas biocêntricas e ecocêntricas, deixaremos de existir | Foto: Maristela Crispim

O deputado destacou ainda o papel das organizações sociais na construção da proposta e citou a parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Cáritas. “Falar em direitos da natureza é falar em demarcação indígena e regularização fundiária. Sem isso, não haverá garantia real”, afirmou. Ele também destacou a urgência de frear o desmatamento acelerado da Caatinga: “Esse bioma só existe no Brasil e está sob ameaça de desertificação. A Caatinga precisa de desmatamento zero, de uma moratória.”

São Francisco como sujeito de direito

Uma mulher de cabelos cacheados e curtos aparece sentada em uma cadeira branca, falando ao microfone com expressão envolvida e gestos amplos das mãos. Ela usa óculos de armação clara, um vestido vinho de alças finas e um colar comprido com um grande pingente. Ao fundo, há um painel azul com textos coloridos relacionados ao Nordeste e transformação ecológica
A promotora Luciana Khoury destaca que barragens alteraram profundamente o ecossistema do São Francisco, transformando fluxos, espécies e modos de vida | Foto: Maristela Crispim

A discussão ganhou reforço da promotora Luciana Khoury, coordenadora do Núcleo de Defesa do Rio São Francisco (Nusf) do Ministério Público da Bahia (MPBA), que há 24 anos dedica sua atuação ao “Velho Chico” e seus afluentes. Khoury afirmou que reconhecer rios como sujeitos de direitos é um passo essencial para garantir a vida, humana e não humana.

“O rio é vivo, e vivos são também os povos que interagem com ele”, disse. Ela lembrou que barragens alteraram profundamente o ecossistema do São Francisco, transformando fluxos, espécies e modos de vida. “Mesmo com gestão de comportas, não há como manter a mesma vida aquática. A mudança é radical.”

Para Kannoa, o reconhecimento de rios como sujeitos de direitos é parte natural da evolução jurídica. “A proteção do clima e da natureza é hoje a vanguarda do Direito. O aquecimento de 1,5 grau é fatal, gera extinções. E a causa dessa extinção é o poder de vida que a humanidade impõe ao Planeta”, afirmou.

Khoury defende que a proteção dos rios exige comitês de bacia estruturados, representativos e respeitados. “Precisamos que todos os comitês existam e sejam empoderados. E que os povos e comunidades tradicionais tenham voz e vez. Muitas vezes o poder público simplesmente ignora decisões que não lhe convêm”, afirmou.

Ela ressaltou que a água não pode ser tratada apenas como insumo econômico. “É preciso considerar sua dimensão ecológica, espiritual e cultural. Para os povos indígenas, há encantados nas águas; para os povos de santo, há espiritualidade. Cada nascente, cada gota tem importância.”

Chamado para um novo paradigma

Tanto Galo quanto Khoury e Kannoa defendem que o debate sobre Direitos da Natureza precisa envolver toda a sociedade. O deputado afirma que a PEC pretende, não apenas ser aprovada, mas abrir um amplo processo de conscientização. “A Bahia tem protagonismo ambiental e deve impulsionar esse movimento”.

A promotora reforça o caráter evolutivo desse paradigma. “Valorizar os rios como sujeitos de direitos é mostrar, enquanto civilização, que aprendemos com os erros e queremos avançar”, afirmou.

Para Kannoa, a discussão marca uma virada histórica: “o Direito da Natureza surge em tempos de direitos humanos, como o próximo passo de um caminho que estamos tentando abrir para que possamos, simplesmente, continuar existindo neste planeta.”

Na COP30, a mensagem vinda da Bahia foi clara: diante de um cenário de conflitos territoriais, expansão de empreendimentos energéticos, mineração e desmatamento, garantir os direitos da natureza é inseparável de garantir os direitos dos povos que a protegem. É um pacto entre vida, território e futuro.

As jornalistas Maristela Crispim e Isabelli Fernandes viajaram a Belém para a cobertura da COP30 com apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS) e estão hospedadas na Casa do Jornalismo Socioambiental, uma iniciativa que reúne profissionais e veículos brasileiros especialistas de todo o País para ampliar abordagens e vozes sobre a Amazônia, clima e meio ambiente.

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