‘Cisternas são política transformadora do País’

Em entrevista exclusiva para a Eco Nordeste, por ocasião da coletiva ‘O protagonismo do Nordeste no Cenário Climático’, na Casa do Jornalismo Socioambiental na COP30, Ivi Aliana Dantas conta um pouco da relação da Agricultura Familiar brasileira com a água no Semiárido. Graduada em Engenharia Agronômica e mestre em Geografia, ela é da Coordenação Executiva da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) Brasil pelo Rio Grande do Norte; trabalha no Centro Feminista 8 de Março na coordenação de projetos; e é militante da Marcha Mundial das Mulheres com atuação em organizações da sociedade civil, no trabalho com mulheres e convivência com o Semiárido desde 2004. Representa a ASA como sociedade civil na Comissão Nacional de Combate à Desertificação e é Ponto Focal do Brasil pela Sociedade Civil para a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD).

Foto de mulher falando ao microfone, em um ambiente de evento ou debate. Ela tem pele clara, cabelos castanhos ondulados na altura dos ombros e veste uma camiseta verde. Seu olhar está atento e ligeiramente surpreendido, como se estivesse reagindo a algo dito ou preparando uma resposta. O fundo é colorido, composto por formas geométricas grandes em tons de amarelo, azul e vermelho
Ivi Dantas afirma que, no início, predominava o paradigma do “combate à seca”, acompanhado de políticas que, na prática, mantinham as populações rurais na escassez | Foto: Isabelli Fernandes

Maristela Crispim – Você pode contar um pouco da história da convivência com as adversidades do Semiárido?

Ivi Aliana Dantas – Temos uma trajetória de cerca de 30 anos olhando para a água no Semiárido. No início, predominava o paradigma do “combate à seca”, acompanhado de políticas que, na prática, mantinham as populações rurais na escassez. As ações se concentravam em grandes obras como açudes e barragens, quase sempre construídos em propriedades privadas, o que deixava as famílias agricultoras à margem do acesso à água.

A organização da sociedade civil e dos agricultores e agricultoras mostrou que não havia como “combater” a seca, e sim conviver com ela. Foi surgindo, então, uma mudança de paradigma baseada no acesso descentralizado à água. Nasciam as primeiras cisternas nos quintais, experiência que se multiplicou e culminou no Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), construído pela ASA e suas organizações, inicialmente com financiamento internacional e, posteriormente, como política pública, uma das mais transformadoras do País.

Ao garantir que cada família pudesse ter seu próprio reservatório, a perspectiva de vida no Semiárido mudou profundamente, especialmente para as mulheres, historicamente responsáveis pela gestão da água no lar. Ter água ao lado de casa revolucionou o cotidiano: do cálculo do uso diário à autonomia para decidir como administrá-la.

O P1MC evoluiu e, hoje, já são mais de 1,3 milhão de cisternas no Semiárido. A ampliação desse acesso mostrou que ainda era necessário ir além: não bastava água apenas para beber. As famílias queriam produzir. Assim surgiu o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), com cisternas de 52 mil litros voltadas à produção agroecológica. Essa “segunda água” impulsionou a agroecologia, favorecendo o cultivo de hortaliças, a alimentação dos animais e a permanência das famílias no território.

Apesar dos avanços, ainda há déficit. Muitas casas não têm sequer a primeira cisterna, e o período de estagnação entre 2016 e 2022 aprofundou essa lacuna. A demanda permanece alta e o desafio continua sendo a universalização da política de acesso à água.

MC – Quais são os maiores desafios hoje?

IAD – O desafio atual é recuperar o tempo perdido e avançar na universalização da primeira água, além de ampliar o acesso à água para produção. Conseguimos construir 1 milhão de cisternas quando muitos duvidavam. Agora, nosso novo horizonte é o “programa 1 milhão de tetos solares”, porque acreditamos que o Semiárido também pode gerar energia limpa e justa diretamente das casas e comunidades.

Outro desafio crítico é enfrentar o avanço da desertificação, a perda de umidade do solo, essencial para amortecer a temperatura e manter a vegetação. Terras em desertificação perdem capacidade produtiva. Temos visto que onde há gente, há recuperação mais rápida dos ecossistemas. Por isso, é fundamental garantir a permanência das populações tradicionais, indígenas, quilombolas e assentadas.

Também precisamos questionar como o Semiárido vem sendo visto e vendido: um território “rico” em vento, sol e agora carbono. A economia verde não pode aprofundar injustiças. A energia gerada aqui deve retornar às comunidades, às mulheres, aos jovens,não apenas “salvar o mundo”, mas melhorar a vida de quem vive nele. Não podemos transformar o Semiárido em uma imensa usina eólica e solar que produz energia “limpa” às custas de novas desigualdades.

Foto de mulher segurando um microfone enquanto olha para a esquerda, como se estivesse respondendo a alguém ou acompanhando uma fala. Ela tem pele clara, cabelos castanhos ondulados na altura dos ombros e usa uma camiseta verde estampada com ilustrações coloridas, além de um colar vermelho. O fundo é vibrante, composto por grandes formas geométricas em amarelo, azul e vermelho
Ivi destaca que, ao garantir que cada família pudesse ter seu próprio reservatório, a perspectiva de vida no Semiárido mudou profundamente, especialmente para as mulheres | Foto: Isabelli Fernandes

MC- E como foi a participação das mulheres nesse processo?

IAD – Minha atuação na coordenação da ASA pelo Rio Grande do Norte se entrelaça com o trabalho do Centro Feminista 8 de Março, que atua em todo o Estado. No processo de convivência com o Semiárido, compreendemos, junto com as mulheres, que elas precisavam conhecer profundamente a metodologia das cisternas, essa tecnologia social revolucionária. Assim, construímos, em parceria com outras organizações, o movimento das “mulheres cisterneiras”.

Elas passaram a construir suas próprias cisternas, tanto de primeira quanto de segunda água, demonstrando que a construção também é trabalho de mulher, quando ela assim deseja. Muitas têm orgulho de apontar a cisterna e dizer: “fui eu que fiz”.

As mulheres também foram fundamentais na concepção de outra tecnologia social que buscamos fortalecer: o reúso da água no saneamento rural. A água da lavagem de roupas, louça ou limpeza da casa pode ser reaproveitada para produção de alimentos. Em um território onde a água é um bem precioso, multiplicar seus usos é essencial. E as mulheres têm sido protagonistas nesse aprendizado coletivo.

MC – Quais são os ensinamentos do Semiárido para outros territórios áridos?

IAD – O Semiárido brasileiro mostra ao mundo como é possível viver em equilíbrio com o bioma, suas limitações, suas forças e sua resiliência. A ASA tem repetido, nesta COP, uma frase que sintetiza esse caminho: “convivência é o nosso jeito de mudar o mundo”.

Conviver significa respeitar o que é justo para as pessoas. Não é aceitar o desmatamento ou a expulsão das populações. É garantir a permanência das comunidades, a recomposição da vegetação e o fortalecimento das estratégias locais.

A Caatinga, que “adormece” na estiagem e renasce com a chuva, e os povos que vivem com apenas três ou quatro meses de água por ano, mostram ao mundo como resistir, reinventar e encontrar alternativas diante da crise climática. Esse bioma e esse povo têm muito a ensinar sobre convivência, adaptação e dignidade em territórios áridos.

A imagem mostra cinco pessoas sentadas em semicírculo, participando de uma mesa de debate em um ambiente interno. Ao centro do fundo há um painel colorido, em azul, amarelo e vermelho, com letras grandes que formam o nome do evento “Casa do Jornalismo”. À esquerda, uma mulher de óculos, roupas escuras e colar vermelho observa atentamente. Ao lado dela, dois homens, um de camisa clara e outro de listras, folheiam anotações. A quarta pessoa, uma mulher de cabelos castanhos ondulados e camiseta verde, segura um microfone enquanto fala. À direita, um homem de colete claro e jeans lê um caderno apoiado no colo. À frente deles há uma mesa baixa com copos, garrafa térmica e livros
Ivi destaca que, ao garantir que cada família pudesse ter seu próprio reservatório, a perspectiva de vida no Semiárido mudou profundamente, especialmente para as mulheres | Foto: Isabelli Fernandes

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