Sincretismo e tradições populares reconfiguram herança colonial na Festa do Divino

Foto feita em ambiente aberto, à noite, de várias pessoas ao redor de uma estrutura feita com trancos finos cobertos com fitas brancas e vermelhas. Duas mulheres mais à frente seguram velas acesas. A mulher mais ao centro usa óculos e uma camiseta vermelha com o desenho da pomba branca que simboliza o divino espírito santo

Momento lúdico da Festa do Divino Espírito Santo no Quilombo Buritizinho / Barra do Brejo, zona rural do município de Formosa do Rio Preto (BA) | Foto: Eduardo Cunha

Na divisa da Bahia com o Piauí, a equipe da Eco Nordeste vivenciou um momento da Festa do Divino Espírito Santo no Quilombo Buritizinho / Barra do Brejo, zona rural do município de Formosa do Rio Preto (BA). Clara manifestação do sincretismo religioso brasileiro e fruto do processo de colonização, a tradição anual adota diferentes formas nas diversas regiões do País onde se realiza secularmente. Em Buritizinho, o festejo dura onze dias e tem sido sustentado nos últimos anos por força da promessa de uma mãe em pedido pela saúde de seu filho.

“Essa festa eu fiz pro meu menino que estava doente, sofreu um acidente que machucou a perna, entrou uma lasca grande de aroeira. Eu pedi ao Divino que se ele abençoasse, não deixasse eu sair no mundo com ele sem ter condições e sarasse por aqui mesmo, eu ficava festejando direto. Aí o Divino abençoou e eu estou sempre rezando, com a ajuda dos amigos. A senhora vê aí o tantão de gente. Meu coração é grande, é pra Deus e o mundo”, conta Abenilda de Moraes, hoje com 60 anos.

Foto de senhora negra usando chapéu de palha, camiseta vermelha com o desenho da pomba branca que simboliza o divino espírito santo, com um casaco preto com uma listra branca na lateral dos braços. Ela está sentada à frente de um altar com toalha vermelha, flores, velas e imagens de santos. Atrás na parede azul, aparece parte de dois estandartes vermelhos pendurados

Abenilda de Moraes, hoje com 60 anos, pediu as bênçãos do Divino para curar o filho e deu início aos festejos na região | Foto: Eduardo Cunha

Chegamos a Buritizinho às sete da noite e pelas escuras estradas de terra a indicação para encontrar o local da festa era a curva depois de uma enorme árvore de tamarindo, cujo diâmetro do tronco dava pistas de uma idade que deve ter assistido muitas gerações festejarem essa fé.

O sinal seguinte da aproximação foi avistar o topo de algumas tendas brancas sobre as copas da vegetação. Elas estavam montadas ao redor de uma pequena igreja com a fachada pintada de branco e vermelho, o desenho de uma pomba branca e o nome “Igreja do Divino Espírito Santo”.

Algumas pessoas, principalmente homens, se amontoavam em pé na porta da igreja. Lá dentro, quase todas as cadeiras de plástico estavam ocupadas por mulheres, crianças e idosos que assistiam a leitura de trechos da Bíblia e escutavam as palavras de um ministro da palavra católico sobre Jesus. Lá fora, outros já se ocupavam da programação de comidas, bebidas e caixas de som.

Findo esse momento, que durou cerca de uma hora, algumas mulheres e meninas se reuniram no altar, ao lado do ministro, para entoarem os benditos, cânticos populares religiosos arrastados e agudos que se ouviam na voz das devotas. Uma prateleira de canto atrás delas guardava alguns símbolos religiosos e três imagens de Nossa Senhora Aparecida, em diferentes tamanhos.

Foto de homem magro vestido com túnica branca e calças jeans ao lado de meninas e mulheres negras com roupas coloridas que cantam. Ao fundo, numa parede azul, O desenho de uma pomba branca com um ramo no bico abaixo da palavra DIVINO escrita em vermelho. Mas abaixo estão pendurados estandartes vermelhos

Num momento da festa, mulheres e meninas se reuniram no altar, ao lado do sacerdote, para entoarem os benditos | Foto: Eduardo Cunha

Na segunda parte do ritual, o anterior protagonismo da pregação e sobriedade do ministro deu lugar à brincadeira do povo. Acenderam-se velas, chegaram instrumentos de percussão e formou-se um cortejo para sair da igreja em direção a um mastro erguido no terreiro em frente. Era uma cruz coberta por panos vermelhos e, no topo, o símbolo do Espírito Santo.

Ao redor da cruz, fizeram um jogo de rimas e depois retornaram para dentro da igreja. Conduziram durante cerca de trinta minutos um samba de roda onde dois homens tocavam uma pequena alfaia e um pandeiro, e as mulheres e meninas entravam em duplas para dançar no centro.

Dona Maroquinha, uma das protagonistas da organização do evento, explica que aquela noite era apenas uma da sequência de novenas antecedentes ao dia da reza final. Começam com “três dias de Reis”, onde passam pelas casas da comunidade recolhendo esmolas. Depois são mais nove noites de reza até a grande festa de conclusão dos dias de devoção, que aconteceria dali a uma semana.

Foto de senhora de cabelo cacheado grisalho preso num pequeno rabo de lado. Ela usa óculos e veste uma camiseta vermelha por baixo de um casaco vinho. Atrás dela há uma parede azul onde aparece a parte de um estandarte vermelho e a palavra SANTO em vermelho

Dona Maroquinha é uma das protagonistas da organização do evento | Foto: Eduardo Cunha

“A festa aqui é uma tradição de muitos anos e cada dia que passa está crescendo. Começou bem pequena e hoje tá muito evoluída, grande. A comunidade tá aumentando e cada vez mais ficando melhor”, celebra Maroquinha.

A reza com música, dança e alegria

O engajamento e a energia das pessoas de Buritizinho no momento do samba de roda revelam a genuína expressão da sua fé. Rezar cantando, puxar folias e agradecer com alegria as bênçãos recebidas constitui a identidade dos quilombolas.

“De forma sintética, isso é uma manifestação do catolicismo popular. Essas festas são, ao mesmo tempo, uma pausa no cotidiano e um ponto de encontro, de ebulição social, de fortalecimento e até de resistência desses povos”, explica Valney Rigonato, professor de Geografia da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB).

Abenilda, a “dona da festa”, como dizem em Buritizinho, é uma das que puxa a cantoria no samba de roda. “Eu sou cantadeira, eu sou rezadeira. Canto folia e rezo também, não só pra mim, pra qualquer um que precisar em qualquer canto. Eu não sei explicar porque todo mundo aqui é cantor, já vem dos mais velhos. Alegria é fazer samba, nós canta e pula por aí que nem bode, é bom demais”.

Quando pedimos para ela mostrar alguma toada, hesitou em cantar porque “uma andorinha só não faz verão”. O costume é da voz coletiva, sem precisar fazer muita força na própria garganta porque a potência da reza musicada se completa no conjunto dos cantadores.

Com um pouco de insistência e acompanhamento, ao fundo, das vozes de outras duas companheiras, ela concordou e entoou baixinho: “Traga um vestido pra mim, meu cravo, quando você vier por cá. Tenho mãe e tenho filho, tenho muito o que cuidar. Dinheiro custa a ganhar e vestido custa a comprar. Fogo nasceu da pedra, baqueta nasceu do chão. Namoro nasceu do olho e querer bem do coração. Traga um vestido pra mim, meu cravo, quando você vier por cá”.

Quatro meninas e três mulheres negras pousam para foto. Uma das meninas é um bebê no colo de uma das mulheres

Noélia de Moraes, 42 anos, ao lado da família, conta que faz parte de uma nova geração a liderar essa organização comunitária | Foto: Eduardo Cunha

Noélia de Moraes, 42 anos, faz parte de uma nova geração que vem liderando essa organização comunitária. Seu pai é um dos mais velhos que já não tem mais condições de saúde para participar das brincadeiras. “Os foliões mais velhos já estão falecendo e a gente não quer deixar essa tradição acabar. Eu nasci e me criei aqui, continuo nessa residência e tenho muito orgulho de ser quilombola”.

Tradição portuguesa trazida
pelos primeiros colonizadores

Em alguns lugares do Brasil chamada apenas de “Festa do Divino”, a manifestação de fundamento católico tem origem em Portugal no século 14, onde foi rapidamente difundida e posteriormente trazida à colônia. Aqui, ganhou novos contornos, incorporou outros elementos folclóricos, a mistura de aspectos sagrados e profanos e o sincretismo de crenças e práticas de povos indígenas e afrobrasileiros.

Os “Dias de Reis” explicados por Dona Maroquinha constituem uma parte histórica da tradição: a Folia do Divino, em que por alguns dias grupos de cantadores visitam as casas dos fiéis recolhendo doações que auxiliam na realização da grande festa final. Levam consigo a Bandeira do Divino, cujo mastro é aquele posteriormente fixado em frente à igreja.

Em vários estados brasileiros, inclusive na Bahia, a festa é registrada como patrimônio cultural imaterial e em alguns lugares o evento reúne milhares de pessoas.

Comunidades tradicionais convivem
com agronegócio no Matopiba

A comunidade Buritizinho / Barra do Brejo foi certificada como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares em novembro de 2018, e é a primeira do município de Formosa do Rio Preto a ter sua autodefinição reconhecida. Os estudos realizados apontam que seus habitantes descendem de negros escravizados fugidos da Fazenda Mocambinho, no sul do Piauí.

Quem nos levou até lá foi Amanda Silva e Ivanildo de Souza, da Cáritas Regional Nordeste 3 e da Agência 10envolvimento, que, em junho de 2024, nos acompanharam em visita a algumas comunidades tradicionais do Cerrado baiano com quem a organização realiza trabalhos de defesa de direitos, fortalecimento comunitário e da agricultura familiar. “As datas de realização da festa mudaram um pouco porque as comunidades começaram a se comunicar e organizar para que não coincidissem e elas pudessem visitar umas às outras”, explica Amanda.

Formosa do Rio Preto é um município do Oeste da Bahia que faz parte do Matopiba, onde as comunidades geraizeiras, ribeirinhas, de fundo e fecho de pasto, quilombolas e indígenas convivem com os impactos do agronegócio em expansão na região.

Como apontado por Rigonato, eventos como a Festa do Divino Espírito Santo e outras manifestações populares tornaram-se ponto de encontro não só entre os habitantes das comunidades rurais, mas também com aqueles que migraram e retornam periodicamente para visitar os familiares. Segundo o professor, uma das causas do êxodo rural é a pressão sofrida com a grilagem de terras e a destruição do Cerrado, desde a década de 1980.

“A leitura que eu consigo fazer é essa, de entender as festas dentro de um sistema sociocultural e produtivo dessas comunidades, que tinham um modo de vida extremamente complexo e enraizado na dinâmica dos plantios, na dinâmica climática do Cerrado e também recebeu influência não só do catolicismo, mas também das manifestações afro indígenas”, complementa.

Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.

O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.

Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo em que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.

O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação-geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts; Adriana Pimentel a edição das newsletters; e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.

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