Olinda (PE). Foram dois anos de espera até o retorno do Carnaval de Olinda, um dos mais tradicionais do País. Na Quarta-Feira de Cinzas, os foliões resistentes aproveitavam cada segundo. Nem mesmo o céu nublado e a chuva intermitente os desanimavam. Blocos carnavalescos, como o Bacalhau do Batata, traziam alegria à “quarta-feira ingrata”.
Era dia 22 de fevereiro. E após seis dias de festa, o frevo ainda fervia. Mas, andando pelas ladeiras que compõem o Sítio Histórico, era nítido que muita gente já se encontrava em clima de despedida. Barracas sendo desmontadas, casas sendo esvaziadas. Colchões, ventiladores, caixas de isopor, bolsas e malas… dentro ou sobre carros, kombis e caminhões. Muitas garrafas e latas vazias de água e cerveja. Catadores uniformizados com sacos na mão. Confetes no chão. Para o folião, o “Carnaval dos Sonhos” se tornara real. Mas, olhando de perto, dava para ver as diferenças entre os perfis. Visitantes, alguns até estrangeiros, curtiam. Moradores, na sua maioria de comunidades carentes, trabalhavam.
Saindo do centro da folia, do Largo do Varadouro, eu decidi seguir o Canal da Malária, um afluente do Rio Beberibe. Sem precisar andar muito, nas imediações do Sítio Histórico, encontrei uma ocupação do Movimento Urbano dos Trabalhadores Sem Teto (Must). Várias casas, quase todas de madeira, entre o curso d’água, fragmentos de mangue e a rodovia estadual PE-015.
Batendo palma, pedindo licença, dei sorte de encontrar a liderança da ocupação: José Carlos, de 40 anos. Ele, um homem negro de pele retinta, estava sem camisa na companhia de dois cachorros. Após me convidar para entrar na sua casa, Carlos me contou que cerca de 60 famílias moram na ocupação, realocada para o Varadouro, região central de Olinda, há menos de dois meses. Se mudaram depois de a Justiça pedir a saída deles de um antigo terreno na periferia da cidade. “Nós sofremos com as enchentes (do ano passado). Nossas casas tudo debaixo d’água. Agora estamos aguardando o que o governo vai poder fazer pela gente. Estamos aqui porque precisamos de uma moradia digna”, afirmou.
Também disse que o vazio na ocupação, durante a reportagem, se devia ao fato de muitos terem saído em busca de um dinheiro extra. Como se diz em Pernambuco, estavam a “fazer uma oêa” no último dia de festa. Nos dias mais agitados, Carlos trabalhou estacionando carro na entrada da cidade.
Segundo balanço da Prefeitura, Olinda teve uma circulação de cerca de 4 milhões de pessoas, um contingente dez vezes maior que a população local. Para quem mais precisa, O Carnaval é uma “oportunidade” que é, e não é, ao mesmo tempo. “É bom para quem vem de fora para gastar, para brincar. A gente aqui sai na rua para conseguir um trocado. E talvez arrume, talvez não. Todos nós temos que correr atrás, porque, se a gente for depender da cidade… a cidade não vai dar nada não. Vai ficar só como história”, diz.
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À medida que Carlos corria atrás do seu, eu fui caminhando em direção à casa da frente, onde estava uma jovem mulher negra grávida. Juliana, de 29 anos, descansava debaixo de uma tenda azul, sobre uma cadeira de madeira, enquanto o marido preparava o almoço. Sem precisar explicar em detalhes quem eu era e porque estava ali, prontamente ela pediu para que eu sentasse ao seu lado. E começou a falar da sua trajetória até a chegada à ocupação do MUST. Crescida em uma comunidade carente de Olinda e mãe de quatro crianças, ela já ocupou vários terrenos sem uso. Em 2010, após ser expulsa pela Justiça, lhe foi prometido um apartamento em um conjunto habitacional que espera há 13 anos. “Ele saindo (o habitacional), a nossa vida melhora bastante. A gente volta a dar conforto para os filhos da gente”, conta. O tempo passou. E Juliana já estava sem esperança. Mas ela voltou a acreditar após receber a chave, em dezembro de 2022.
Um pequeno alívio em um dos anos mais difíceis da sua vida. Como o apartamento prometido não chegava, e o auxílio moradia, de apenas 200 reais, não dava conta de pagar um aluguel, ela e o marido decidiram comprar um lote de terra em Dois Carneiros, no município de Jaboatão dos Guararapes. Investiram o recurso de anos em prol de um sonho. Porém, “quando a gente terminou de construir a casa, aconteceu isso (a queda da barreira) no dia 28 de maio (de 2022). Perdemos tudo. Todos os móveis. Mas graças a Deus não perdemos a vida, não, é?”.
No dia 28 de maio, em poucas horas, choveu por volta de 200 mm na Região Metropolitana do Recife. A data marcou o início de um dos ciclos mais trágicos da história recente de Pernambuco, quando 133 pessoas morreram em decorrência de inundações e deslizamentos de terra. Quase 130 mil precisaram deixar suas residências. “Quando chove eu não consigo dormir por causa do trauma, por conta do que aconteceu com a minha casa. Era (por volta de) 4h45 da manhã. Quando a gente foi dormir, meus vizinhos estavam fazendo uma festa. Quando a gente acordou, eles estavam soterrados”, conta. Os dois vizinhos morreram. Ela e a família ficaram desabrigados. O auxílio chuva, benefício emergencial criado para amparar as vítimas, só foi pago a ela em janeiro de 2023, oito meses depois da tragédia. Uma parcela de 1.500 reais.
Após ter a casa soterrada em Dois Carneiros, Juliana tentou manter a família vivendo de aluguel. Mas seu marido, que é carpinteiro, teve uma lesão no tendão no dedo e precisou se afastar do trabalho. O acidente aconteceu em agosto de 2022. A perícia do INSS, que lhe garantiria um auxílio-doença por incapacidade temporária, está agendada para maio de 2023. Um intervalo de dez meses. No ano passado, Juliana perdeu a casa, os bens e a renda do marido. Sobraram apenas 800 reais, do auxílio brasil (600 reais) e do auxílio-moradia (200 reais). “Ou a gente come com esse dinheiro ou paga o aluguel”, explica.
Sem alternativa, ela se viu forçada a voltar para uma ocupação, 13 anos depois. “Comprei 1 milheiro de tijolo, 2 metros de areia, 8 sacos de cimento e já fiz um pedaço (da casa) para ter onde ficar com meus quatro filhos. Não tem condição de a gente morar em um barraco de madeira”, diz. Mesmo tendo arritmia cardíaca e epilepsia e estando grávida de sete meses, Juliana trabalhou incansavelmente vendendo água em um sinal durante o Carnaval.
Antes de a cidade de Olinda parar devido às festividades, ela buscou atendimento médico para si e para as crianças em um posto de saúde por 10 vezes. Sem sucesso. Seu filho mais velho, de 12 anos, tem deficiência intelectual. Já a filha mais nova, de 4 anos, tem suspeita de transtorno comportamental. Na Quarta-Feira de Cinzas, as crianças estavam na casa da avó, dando um descanso à mãe. Juliana realmente parecia cansada. Mas sua voz continuava firme. Ela falava com o marido enquanto ele colocava pratos na mesa com a amiga, que também perdera a casa em Dois Carneiros, e comigo que a entrevistava. “(Olinda) é uma cidade que só tem ‘boniteza’ lá para cima, mas aqui para baixo não tem não. Não tem saúde, não tem educação. Quando chove, as ruas ficam alagadas. Num instante enche. O Carnaval estava lá em cima, botando bloco, isso e aquilo. Mas na realidade o pobre onde ficou? Porque até na hora de trabalhar tinha que trabalhar com a cerveja que patrocinou o Carnaval. Se você trabalhasse com outra, o material era tomado”, diz, com indignação. Apenas produtos do patrocinador puderam ser comercializados no Sítio Histórico. A notícia da proibição dos demais produtos foi dada a menos de três dias da festa.
Sonho irreal
A poucas horas do fim da festa, o “Carnaval dos Sonhos” se mostrava irreal para uma maioria. Quando perguntei a Juliana qual seria o seu sonho, ela desconversou de si, e foi objetiva em dizer “que lembrem que os pobres existem”. Ela fala quase o tempo inteiro no plural: na família, nos vizinhos, nas pessoas em situação parecida com a sua. “Na gente”. Diz que o dia a dia em uma ocupação urbana é difícil, que existem momentos de discórdia e desunião, mas que os moradores, no geral, se resolvem e se ajudam.
O problema maior, segundo ela, é a relação com quem é de fora. “A gente leva intimidação de pessoas e também da Polícia que chega aqui e não quer saber que é morador, que é trabalhador, que é pai de família. Critica a gente por tudo. Acha que qualquer um é vagabundo. Isso se torna ruim”, lamenta. Diz que ela e o marido até “suportam” o estigma e as dificuldades. Mas fica sentida pelas crianças. Juliana espera que o habitacional fique pronto o quanto antes.
Após nos despedirmos, me pus a andar pelo chão de barro da ocupação, à procura de alguém, até ouvir o som de marteladas na madeira. Era seu Gilson, de 56 anos, construindo o seu ‘quartinho’ de 5mx5m. Com muita objetividade, ele se introduziu como: “um ‘nego véio’ correndo atrás da sobrevivência”. Contou que, ao longo da vida, foi obrigado a vender duas casas de “graça” devido ao risco de deslizamento de terra.
Junto da família, saiu da beira de uma encosta disposto a não mais vivenciar essa realidade. Então comprou uma casa na periferia de Olinda, em uma planície próxima ao Rio Beberibe. Não deu certo novamente. “Quando deu a primeira cheia, fim de ano, um dia de sábado. O pessoal estava pulando do muro fazendo trampolim. A minha mulher socorrendo os móveis e a água levando o meu filho no berço pela porta dos fundos. Minha enteada era pequenininha, tinha 12 anos, conseguiu segurar o berço. Aí começou o processo. Fiquei de aluguel sofrendo, sofrendo, sofrendo”. E tem sido assim por 4 anos.
Até que ele encontrou uma “oportunidade” de fazer o dinheiro render em uma ocupação. Seu Gilson é camelô. Vende frutas e verduras no Centro do Recife. Porém, durante o Carnaval, ficou em Olinda, aproveitando o gigantesco vaivém de foliões e turistas. Enquanto a chuva fina dava uma trégua, ele trabalhava na melhoria do seu barraco.
Até que seu Gilson para, se levanta e dirige a palavra a um jovem negro, pele clara, que acabara de chegar. “Gabriel, Gabriel. Perdesse as madeiras, Gabriel? Deixasse o vento levar?”, perguntou. As madeiras são heranças da antiga ocupação onde Gilson e Gabriel se conheceram. “O único apoio quem me deu, e não é nem da minha família, foi esse senhor (Gilson). Primeiramente Deus, que eu creio muito. E segundamente ele”, afirmou. Ao contrário da maioria das pessoas, Gabriel, de 22 anos, tem uma curta trajetória em ocupações e movimentos sociais. Há menos de 6 meses, ele tinha onde morar, até ser expulso de casa pelo pai.
Sonho possível
Mas essa história começa bem antes, aos 8 anos de idade, quando um acontecimento trágico mudou a sua vida. “A minha mãe me deu um tapa na cabeça, aí eu caí na escadaria. O crânio rachou e se transformou em um câncer. Passei um bom tempo no hospital internado. Fui fazer cirurgia. E por causa disso eu passei a receber esse benefício (aposentadoria)”, disse, antes de mostrar a cicatriz em linha reta indo de ponta a ponta da cabeça. Desde então, ao longo de todos esses anos, seu pai ficava com seu cartão e recebia o dinheiro da aposentadoria por ele. Gabriel não sabia disso. Até que, certo dia, há cerca de 6 meses, o benefício foi bloqueado sob a “justificativa” de que Gabriel possuía duas fontes de renda.
Quando isso aconteceu, seu pai, único parente próximo, o tirou de casa. “Assim que ele me botou para fora, eu fui vendendo água, entrei dentro de invasão… para sobreviver. Chegando lá, eu nem precisei fazer um barraco, pois já me deram um”, conta. Mesmo “sozinho” no mundo, ele encontrou acolhimento dentro do movimento social. Encontrou o seu Gilson.
Estes meses têm sido difíceis, mas ele é grato por estar vivo e firme na luta. “Não precisei do meu pai. Ele ficava ferrando meu psicológico. Dizia que eu era incapaz de trabalhar, incapaz de fazer qualquer coisa. E hoje eu estou vendo que é tudo diferente. Posso trabalhar. Posso ganhar meu dinheiro. É pouco, mas eu estou sobrevivendo. Até agora essa é a minha maior mudança: saber valorizar o que estou ganhando”, diz.
Quando saiu da antiga ocupação, Gabriel começou a receber o auxílio-moradia de Olinda, de 130 reais, um valor que não lhe garante segurança alguma. Ele ainda não foi aprovado no Auxílio Brasil. Para piorar, roubaram seus documentos recentemente. Para tirar novos, dependeu da ajuda do seu Gilson.
Durante o Carnaval, Gabriel trabalhou como ambulante, vendendo água à margem da festa. Aproveitava a “oportunidade” de 6 dias que a cidade oferece. “Ontem mesmo fui passar por um bloco ali, oxe, só gringo, gringa, espanhol… A ‘poxa toda’ ali (no Sítio Histórico). Mas o povo não está nem aí, não. O pessoal do governo só quer saber de dinheiro e pronto. Eu gostaria que eles (Prefeitura) olhassem para a gente. E desse prédio (habitacional) ou, se não, material para a gente construir aqui mesmo. Esse é o meu sonho, meu objetivo. Desbloquear meu benefício ou arranjar um emprego de carteira assinada”, relata.
Saí da ocupação grato pela hospitalidade, fazendo o caminho inverso do Canal da Malária. Menos de 5 minutos de caminhada separam as planícies favelizadas, onde está a ocupação do MUST, das colinas na “Cidade Alta”, onde o “Carnaval dos Sonhos” acontecia. Mesmo se materializando no espaço público, a festa nas ladeiras históricas de Olinda está longe de ser democrática. As ladeiras mais funcionam como um elevador social, de espaço restrito, por onde sobem alguns. O de serviço é muito mais numeroso.
Assim que a Quarta-Feira de Cinzas acabou, a Prefeitura anunciou que o Carnaval movimentara quase 400 milhões de reais na economia da cidade. Porém, mais importante do que números, é saber para onde e para quem vai esse recurso? Ter o título de Patrimônio Cultural da Humanidade não muda a realidade de Julianas e Gabriéis. Não salvou a vida de Israel, um jovem negro de 19 anos que morreu soterrado na periferia de Olinda, no dia 6 de fevereiro de 2023. Faltavam menos de 2 semanas para o início do Carnaval. Uma “chuva anormal” em pleno verão. A chuva que vem e revela, da pior forma, problemas pré-existentes. Mas na “Cidade dos Sonhos”, os olindenses, de sangue e de coração, vão ter onde morar. E a chuva não vai mais ser sinônimo de medo e morte. Hoje, cada barraco que se ergue na ocupação, clama por mudança, entra na linha de frente para fazer dessa fantasia uma realidade permanente.